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05 de Fevereiro de 2015 – 05h12 horas / El País

Duas moças da área comercial de um guia publicitário tentam convencer seu Henrique para que pague por um anúncio da sua empresa de caminhões-pipa.

—O senhor sabe que agora com a falta de água aqui a visibilidade é muito importante

— chuta a mais nova, após esgotar todos os cartuchos.

— Aah! Estou há 40 anos neste negócio e cliente justamente é o que não me falta. Estou fora mesmo! Não quero publicidade, não!

Nem o biquinho das moças nem as promessas de grande destaque no guia seduzem seu Henrique. O septuagenário acumula tantos clientes nestes dias que não consegue atendê-los, apesar de sua empresa, que conta com 40 veículos, trabalhar a todo vapor 24 horas por dia e ter aumentado seus preços em mais de 100%. Apenas a publicidade da Internet, onde a procura por caminhões-pipa no Google quintuplicou no último mês em São Paulo, lhe parece interessante, e isso só depois de um intenso trabalho de doutrinamento do seu filho, também Henrique.

Com a redução da pressão nas torneiras que a Sabesp vem fazendo em sigilo há meses e a intensificação da prática no mês passado, a demanda por caminhões-pipa disparou 40% desde novembro, de acordo com Marcelo Nigro, diretor da distribuidora Transluf e conhecedor de um setor que conta com cerca de apenas 650 veículos para o transporte de água em toda São Paulo.

A água corre pela árvore genealógica do velho Henrique, ou isso é o que ele fabula para escapar da entrevista de qualquer jeito. O pai dele dedicou sua vida a vender e transportar água e o avo nasceu em alto mar durante uma das cruzadas do bisavô, espanhol e pirata. O que seu Henrique não quer é falar dos números da sua empresa, uma das maiores de São Paulo, que funciona melhor do que nunca nos últimos meses. “Há muito bandido no setor”, alerta, empinando seus dedos como se fossem uma arma.

A falta de chuva e de planejamento, que mantêm o sistema Cantareira com 5,1% da sua capacidade ameaçando o abastecimento do Estado, trouxe para a empresa familiar, que trabalhava só com obras e algumas indústrias, certa prosperidade ao receber pedidos de hospitais, condomínios, restaurantes, asilos, hotéis e grandes empresas. A receita de Henrique aumentou 20% só nas últimas semanas nas quais um rodízio severo é uma ameaça presente na vida dos paulistas. Os mil litros de água, captados do poço artesiano de 300 metros de profundidade pelo qual pagam uma taxa de 4.000 reais por ano, passaram de 30 a 70 reais. É a lei da oferta e da procura e uma maneira, explica Henrique, de manter os clientes de sempre. “O preço aumentou porque não podemos atender toda a demanda, agora conseguimos investir mais –  estão aguardando dois novos caminhões – e nos sentimos mais valorizados. Até hoje, a água não valia nada para ninguém e era um setor bem restrito”, explica o empresário.

O boom dos caminhões-pipa, alternativa na qual confia a grande parte das indústrias, hospitais e empresas de São Paulo diante um rodízio rígido na cidade, é tão limitado quanto caro. “Não existem caminhões suficientes para abastecer toda a demanda potencial. Não podemos contar com os caminhões nem com poços artesianos, pois já identificamos uma quantidade significativa deles que secaram”, lamenta o professor Rodnei Domingues, coautor de um relatório que denuncia a falta de planos de emergência nas instituições e indústrias paulistas.

“Nosso setor, mesmo crescendo 200% neste ano, não consegue atender a crise que está instaurada em São Paulo. Nós apenas somos um fornecimento alternativo”, alerta Nigro, da distribuidora Transluf. Para o empresário, o setor está no limite. "Nosso gargalo é que não temos mais onde captar água. Nenhuma empresa tem capacidade de ampliar sua oferta em menos de 90 dias. Todas são medidas de médio prazo, desde perfurar um novo poço a comprar novos caminhões. Algumas empresas, com certeza, irão investir, pois calculamos que a crise não vai durar menos de cinco anos, mas hoje não temos como crescer."

Mini-cidade sem água

Após vestir o macacão azul e uma capa de chuva de pescador amarela, Camilo Lelis, um motorista que já tem idade para ter se aposentado, pula na boleia do caminhão e com 20.000 litros de água na garupa vai se esquivando dos carros até o Morumbi. No destino, Lelis cumprimenta com familiaridade os seguranças de terno que fiscalizam o acesso a um condomínio de luxo, uma entrada com cancelas de pedágio. O condomínio está recebendo uma média de dez caminhões – pode chegar a 20 – por dia, de acordo com o gerente do prédio, Zacarias Delaporta. Sem pressão nos canos, a água não chega aos reservatórios e muito menos aos andares mais altos desses gigantes feitos de mármore. A conta é de aproximadamente 6.000 reais diários. Um luxo a mais para as 800 famílias que moram nessa mini cidade que já cogitou um rodízio interno, mas acabou descartando por dificuldades logísticas.

—O prefeito disse que ia fazer um rodízio, mas não disse quando nem como. Assim fica difícil se programar — reclama o responsável pela manutenção do condomínio.

—O senhor diz o governador, né?

—Sim, o que for. A questão é que não sabemos nada.

A alternativa para que as contas do condomínio não dispararem mais é desenterrar dois poços que existem desde a construção dos prédios e testar se são aptos para consumo, além de começar a usar a água da piscina para a limpeza externa, mas sem renunciar ao caminhões-pipa de Henrique.

O que sim está nas mãos da prefeitura é liberar o tráfico de caminhões-pipa na cidade, restringido hoje na maior parte do dia pela chamada Zona Máxima de Restrição de Circulação. O setor vai solicitar à Prefeitura que revogue a lei durante a crise hídrica. Mas mesmo conseguindo uma flexibilização dos horários, Nigro adverte sobre a dificuldade de abastecer o cidadão comum. “As empresas têm muita dificuldade porque está faltando agua em bairros, e nossa atividade é mais em shoppings e indústrias, lugares que têm estrutura para receber um caminhão. Nós não conseguimos entregar essa água em qualquer residência.”

“Sei que é pecado falar, mas talvez esta falta de água seja uma espécie de castigo. Para mim é bom que falte água, porque este trabalho nunca foi bom. Com sorte esta crise me aposenta”, despede-se o velho Henrique.


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